Dinossauros: animais de ‘sangue quente’?
Análise de ossos de ruminantes pode ajudar a entender a fisiologia dos dinossauros. O estudo de Alexander Kellner, derruba objeções à hipótese de que alguns desses répteis extintos seriam capazes de usar processos metabólicos para regular sua temperatura corporal.
Por: Alexander Kellner
Muitos pesquisadores defendem que a fisiologia dos dinossauros seria mais parecida com a dos répteis tradicionais do que com a dos mamíferos e aves, mas há evidências que põem em xeque essa hipótese. (reconstrução de Maurilio Oliveira/ Museu Nacional)
Não deve ser difícil para o leitor imaginar as dificuldades que estão relacionadas com a pesquisa da fisiologia de animais extintos. Muitas vezes eles são tão diferentes das espécies atuais que elaborar hipóteses aceitáveis sobre como seus organismos funcionavam torna-se uma tarefa bastante complicada. Essa situação vale, particularmente, para os dinossauros e formas aparentadas.
Para tentar responder questões vinculadas à fisiologia de espécies extintas, lançou-se mão de estudos paleohistológicos, feitos a partir do exame de lâminas delgadas de ossos desses animais.
Com base em análises realizadas em alguns répteis atuais, verificou-se a existência de anéis concêntricos nos ossos. Essas linhas se formam pela alternância de fases de crescimento, quando ocorre deposição óssea, com etapas em que o crescimento para e essa deposição diminui.
Como a maioria das seções paleohistológicas realizadas em ossos de dinossauros apresentam linhas de interrupção de crescimento, muitos pesquisadores passaram a defender que a fisiologia desses animais seria mais semelhante à dos répteis tradicionais (crocodilomorfos e lagartos) do que à dos mamíferos e aves. No entanto, essa interpretação contraria outras evidências, como o fato de algumas espécies de dinossauros terem crescimento rápido – como acontece com os mamíferos – e cobertura tegumentar (penas ou protopenas) – característica observada em aves.Segundo pesquisas, esse crescimento cíclico é típico de organismos com baixo metabolismo e essas linhas de parada de crescimento devem-se à diminuição da temperatura corporal, o que ocorre com a maioria dos lagartos, por exemplo. Animais com metabolismo alto conseguem manter a temperatura de seu corpo estável e, desse modo, teriam crescimento contínuo, sem interrupções significativas até chegarem à maturidade, quando deixam de crescer. Assim, não apresentariam linhas que refletem interrupção de crescimento. Esse seria o caso dos mamíferos e das aves.
Uma pesquisa publicada recentemente na Nature e conduzida por Meike Köhler (Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha) e colegas pode justamente ajudar a resolver esse impasse. Esses autores fizeram o mais completo e detalhado estudo de lâminas ósseas de um grande número de mamíferos.
Os pesquisadores analisaram lâminas do fêmur de 115 indivíduos de mais de 40 espécies diferentes de mamíferos ruminantes – que englobam, entre outros animais, cervídeos, bovídeos, antílopes e girafas. Além disso, monitoraram duas populações de ruminantes com relação a variáveis como temperatura corporal e níveis hormonais e coletaram dados sobre esses animais publicados de forma esparsa na literatura.
Modelo ideal
Ruminantes são ideais para estudos sobre a relação entre metabolismo, crescimento e variação de temperatura corporal por diversos motivos. Primeiro, eles vivem em distintos ambientes climáticos, desde áreas bem frias, como o norte da Europa, até a região equatoriana da África, tipicamente quente.
Ademais, a maioria das espécies tem um período juvenil relativamente longo, que ultrapassa 12 meses. Dessa forma, a fase de crescimento desses animais se estende por todas as estações do ano, o que não ocorre com muitos outros mamíferos, que chegam à fase adulta bem antes.
Por último, devido à alta necessidade de calor decorrente do seu complexo estômago, os ruminantes são considerados um estado extremo de animais homeotérmicos (capazes de manter a temperatura do corpo relativamente constante) e endotérmicos (regulam sua temperatura corporal por meio de processos metabólicos).
Popularmente, as formas endotérmicas são chamadas de ‘animais de sangue quente’ e as ectotérmicas de ‘animais de sangue frio’. Mas os pesquisadores evitam esses termos, por causa da sua imprecisão
Os animais endotérmicos distinguem-se dos ectotérmicos, porque estes últimos obtêm calor do ambiente no qual se encontram, tornando-se dependentes de condições externas. Com relação à capacidade de manutenção de uma temperatura constante no corpo, os homeotérmicos diferem dos pecilotérmicos (ou poiquilotérmicos), nos quais a temperatura corporal pode exibir grandes variações. A maioria dos mamíferos é homeotérmica e endotérmica.
Popularmente, as formas endotérmicas são chamadas de ‘animais de sangue quente’ e as ectotérmicas de ‘animais de sangue frio’. No entanto, os pesquisadores hoje em dia evitam esses termos, por causa da sua imprecisão e da confusão que podem gerar. Por exemplo, estudos provaram que muitos lagartos – que são formas ectotérmicas –, quando tomam ‘banhos’ de sol (estratégia comum usada por animais com baixo metabolismo para aumentar a temperatura do seu corpo), possuem, nesse momento, uma temperatura corporal mais alta até do que a de muitos mamíferos.
Resultado surpreendente
A grande surpresa do estudo de Meike Köhler e colegas foi a constatação de que todas as espécies de ruminantes analisadas, independentemente da latitude, do clima e das condições ecológicas em que viviam, exibem linhas indicativas de interrupção de crescimento. Desde o pequeno antílope Nesotragus moschatus, com pouco mais de 3 kg, até o maior dos antílopes (Tragelaphus derbianus), cujo peso ultrapassa 900 kg, apresentaram essa característica.
Com base no monitoramento de duas populações de ruminantes, os pesquisadores puderam determinar que, durante tempos de escassez alimentar e condições adversas (secas ou invernos rigorosos), esses mamíferos colocam em ação uma complexa estratégia de conservação de energia. Esta inclui variações tanto da temperatura corporal como das taxas de metabolismo, além de alterações nos níveis hormonais. Todas essas mudanças levam à parada de crescimento evidenciada nas lâminas histológicas. Por outro lado, em tempos de fartura (geralmente nas estações chuvosas), esses mamíferos maximizam o seu crescimento.
Dessa forma, fica claro que o crescimento cíclico, ou seja, a existência de variações na deposição óssea em função da estação do ano e da disponibilidade de recursos naturais, é um fenômeno que ocorre em todos os animais e não está restrito apenas a formas ectotérmicas, como se pensava antes.
Essa estratégia fisiológica – de diminuir o crescimento diante de adversidades – pode ser considerada uma característica primitiva. Mas os mamíferos também desenvolveram a estratégia de maximizar o seu crescimento quando os recursos são abundantes. Esse crescimento acelerado, evidenciado pela grande vascularização nos ossos, pode, segundo o estudo liderado por Meike Köhler, ser de 10 a 30 vezes maior que o das formas ectotérmicas. Essa é a grande diferença entre esses animais e pode ser considerada a novidade evolutiva desenvolvida pelos mamíferos.
Definições imprecisas
Diante da observação de que linhas indicativas de paradas de crescimento também ocorrem em animais endotérmicos, não se pode utilizar esse tipo de evidência para argumentar que os dinossauros são necessariamente formas ectotérmicas.
Os dinossauros são tão diversificados que seria quase impossível imaginar que todos teriam as mesmas características fisiológicas
Aliás, existe uma tendência nossa de simplificar o que, às vezes, não pode ser simplificado. No campo da fisiologia, podemos constatar uma diversidade muito grande de características nas formas atuais. Há peixes que vivem em ambientes com temperatura externa tão constante que se comportam como animais endotérmicos, morcegos cujas temperaturas do corpo podem diminuir drasticamente, entre outros exemplos.
Por isso, o mais correto seria ver a endotermia e a ectotermia como pontos extremos separados por uma grande variedade de situações intermediárias. Sem contar que os dinossauros são tão diversificados que seria quase impossível imaginar que todos teriam as mesmas características fisiológicas.
Essa pesquisa me lembra um ponto que sempre enfatizo para os meus alunos: para entender a natureza, nós, da espécie humana, temos a necessidade de classificá-la e de elaborar definições. O problema é que nem sempre a natureza “colabora”... Brincadeira à parte, nunca é demais lembrar que definições são realizadas por nós e nem sempre os fenômenos encontrados correspondem às nossas expectativas. Nessas situações, precisamos rever conceitos e paradigmas. A fisiologia dos animais é um desses casos.
Alexander Kellner
Museu Nacional/ UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
Alexander Kellner
Museu Nacional/ UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
Fonte: Ciência Hoje / Colunas / Caçadores de fósseis
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